Por Mariana Carvalho
Quando recebi o convite para escrever para o blog Convivendo com Diabetes, a primeira coisa que me veio a cabeça foi: “Nossa, que responsabilidade escrever sobre a diabetes, uma doença que atinge tão profundamente a vida de algumas pessoas, mas que tenho tão pouca proximidade”. Sem querer me coloquei em lugar de afastamento, produzi uma diferença que nos separa, encarnei a lógica da escolha (falarei sobre esta, mais a frente) ao entender que “eu não imagino como é ter uma doença crônica”.
Minha formação me obriga a refazer tal formulação. Cabe aqui uma breve apresentação dos caminhos percorridos nessa curta, mas já tão querida, trajetória profissional. Me formei no Colégio Pedro II, em 2008, e é incrível como ainda hoje ele continua me dando lindos presentes, como o convite para participar deste blog (estudamos juntas, Beatriz e eu, ainda no ensino fundamental). Lá dentro, tive a oportunidade incrível de ainda aos 15 anos participar de um programa da Fiocruz, que me permitiu estar em um hospital como pesquisadora durante oito anos da minha vida, três ainda no colégio e cinco na faculdade de psicologia. Este lugar me tornou sensível, característica fundamental para minha profissão. E todos esses espaços me trouxeram o que me proponho dividir aqui: interlocuções sobre o cuidado, a capacidade de criarmos novas normas, os afetos que nos atravessam, a doença crônica. A partir da lembrança dos lugares que me formaram, posso estar com vocês de um outro jeito, posso me aproximar pela lógica do cuidado.
Escrevi minha monografia a partir de experiências que tive no hospital e sobre a teoria de uma autora holandesa, Annemarie Mol, que aborda duas lógicas em que as narrativas de pacientes com doenças crônicas (na pesquisa dela mais especificamente pacientes com diabetes – sim, coincidências da vida!) as apresentam: a lógica da escolha e a lógica do cuidado. Na primeira, muito valorizada através da nossa cultura individualista, a “escolha do paciente” é valorizada. Os profissionais de saúde indicam o que o paciente deve fazer. Cabe a ele “escolher” de que forma vai dar conta da sua nova condição de saúde.
A autora apresenta um exemplo da sua própria experiência:
Grávida aos 36 anos, na Holanda, ela pode fazer um exame para detectar se o bebê tem alguma síndrome. Caso seja positivo o resultado, neste país a mãe tem o direito de abortar, caso seja sua vontade. Ela segue o conselho e vai fazer o tal exame. Diz para a enfermeira que está preparando uma longa agulha para enfiar no seu ventre: “Eu espero que tudo corra bem”. A enfermeira responde: “Bem, foi sua própria escolha”. A enfermeira poderia ter falado: “Vamos, realmente espero que tudo corra bem”, “na maioria das vezes não há nenhum problema”, ou “você pode relaxar e ter uma tarde tranquila que tudo ficará bem”. Ao invés disso ela mobiliza a lógica da escolha e lança tudo que pode dar errado para as costas do paciente.
Já tinha pensado em começar lançando esse tema. Mas o depoimento da Beatriz sobre o acontecido no final de semana na entrada de um show, só afirmaram a necessidade de falarmos sobre isso. Para quem não acompanhou, explico rapidamente. Bia e seu namorado foram ao show da Ana Carolina e Seu Jorge, no final de semana. Como recomendado, Bia levou, como deve levar sempre, sachês de açúcar, água e um lanche, já que sua glicose pode baixar rapidamente. Mesmo com a explicação da recomendação médica, a funcionária da entrada barrou sua entrada e disse que ela só poderia entrar caso jogasse seu lanche no lixo. “Argumentei que se eu ficar muitas horas sem me alimentar corro risco de ter hipoglicemia e passar mal. A funcionária então me respondeu friamente: se você passar mal, temos posto médico”.
Ali não importava se aquele biscoito faz parte do que é a possibilidade de Beatriz estar em um show. Não importava a recomendação médica. Não importava se ela não podia comer o que constava no cardápio. Só importava as regras do lugar. Só importava o cumprimento das ordens, que é a mesma, independente da situação, independente das condições de cada um. As duas, funcionária e Beatriz estavam sobre duas lógicas diferentes. A primeira lança para a segunda, toda a responsabilidade por sua condição de saúde, a individualiza.
Pela lógica do cuidado criamos mundos mais potentes a medida em que nos consideramos muitos, quando somos um coletivo. A lógica do cuidado nos indica a relevância de repensarmos nossas ações de modo a melhor acomodar as exigências da doença com os hábitos, necessidades e possibilidades na vida diária. O cuidado tem a ver com a articulação de mundos potentes.
Ao longo de seu estudo a autora enfatiza o ideal dos ‘bons cuidados’, que não tem como função ensinar o que seriam estes, mas que através das histórias de pacientes com diabetes e das especificidades e força dessas histórias e práticas contadas, um ideal de bom cuidado possa atravessar as fronteiras e contaminar outras práticas (Mol, 2008). É essa nossa aposta. Vamos compartilhar nossas histórias de “bom cuidado”? Vamos deixá-las nos contaminar e fazer repensarmos nossas práticas?
MOL, A. The logic of care: health and the problem if patient choice. London: Routledge, 2008.
Mariana Carvalho (CRP: 05/48926) é psicóloga e atende no Rio de Janeiro. Para entrar em contato, basta enviar um e-mail: carvalho.m.psi@gmail.com